Mafalda


terça-feira, agosto 29, 2006



Metáfora

Em 1932, foi realizada uma pesquisa com pessoas portadoras de catarata congênita. Após serem submetidas à cirurgia que lhes deram a visão, elas relataram, inicialmente, que não enxergavam com nitidez. Viam estímulos fortes com muito brilho e cores. Para alguns pacientes estas novas sensações eram tão desconfortáveis que chegaram a solicitar ao médico que lhes restituíssem a cegueira.
Diante daquilo que desconhecemos, agimos, não raramente, de forma análoga a estes pacientes. Quando nos deparamos com uma idéia ou uma proposta de ação diferente e estranha às nossas concepções, tendemos a rejeitá-la de imediato. Refletir e talvez aceitar um pensamento novo, causa sofrimento, pois nos leva a questionar os valores que sustentam nosso juízo acerca da vida. É cômodo e compreensível nosso ímpeto de manter as mesmas convicções. Mas, conseqüentemente, cometemos injustiças, não vislumbrando os benefícios de um conceito inédito.
A história está repleta de casos que ilustram isso. Galileu Galilei, Joana D’Arc, Tiradentes, Nelson Mandela são exemplos de pessoas que foram perseguidas por ousarem nos trazer a luz. Felizmente, como no caso de Mandela, nem sempre o final é trágico - o que nos tapa os olhos é tão absurdo que o tempo se encarrega de desvendar. E não há como esquecer a trajetória de Jesus Cristo...Incoerentemente, muitos o servem, mas esquecem o porquê de sua crucificação. (Remeter à vida de Jesus, ainda que seja extraordinária e incomparável, é imprescindível para demonstrar o que a aversão ao inusitado pode causar).
Mesmo dispensando o conhecimento alheio é impossível não entrarmos em contato com o novo. A novidade é oferecida no cotidiano – a dificuldade não está na falta do que aprender e sim na ausência da curiosidade. No entanto, interessar-se pelo desconhecido implica coragem para enfrentar a própria insegurança e o “risco” de jamais retornar ao estado anterior. Embora pareça complexo, é isso que qualquer criança faz através das brincadeiras e na escola. A diferença é que tememos demasiadamente e pressupomos ou que já sabemos o suficiente ou que não temos mais idade para aprender...O conhecimento é uma obra aberta e interminável, e enquanto a saúde permitir, vale a pena construí-la. Mas é uma viagem sem volta: não cultive a esperança que alguém possa tornar-te “cego” novamente!

NOTA: A alusão à cegueira é apenas uma metáfora. Desprezo qualquer forma de desrespeito ao portador de deficiência visual.

sábado, agosto 26, 2006

Retrato da desigualdade

A Festa do Peão é uma grande celebração de nossa cidade. Fora daqui, quando se fala de Barretos, pensam de imediato na nossa famosa Festa. Sou barretense e desde criancinha a freqüento. Apesar disso, apenas neste ano reparei com tristeza no que vou lhes dizer. Ressalvo, desde já, que não estou criticando especificamente ninguém. Expresso aqui meu descontentamento a partir de um olhar desprovido de fanatismo por este evento.
Na primeira noite, tive o privilégio de ficar num dos camarotes. É óbvio que isso me agradou. Extremamente confortável! Além de comida e bebida à vontade, os sanitários estavam sempre limpos, pois os funcionários permaneciam lá. Estive num dos ranchos também. Situação semelhante. Já no sábado, após jantar no rancho, fui para a arquibancada do estádio. Estava completamente lotado. Passado um tempo, fui ao sanitário. Na verdade, tentei ir: a situação estava deplorável, chegando a ser desumano pedir a alguém que o utilizasse. Então, resolvi esperar, sentei e comecei a divagar. Neste momento, eu já não via o show. Passei a enxergar um retrato cruel daquela festança.
O que pensei primeiramente era porque o “povo” não pode desfrutar de banheiros limpos. Depois, fiquei triste ao lembrar que alguém teria que higienizar aquele sanitário no dia seguinte. “Nossa, quem faz esse tipo de serviço deveria ganhar muitíssimo bem”, pensei ingenuamente...Então, a amargura tomou conta de mim e refleti: “quem tem boas condições econômicas, gasta menos para curtir a Festa e é agraciado com imenso conforto; por outro lado, as pessoas de baixa renda, pagam para assistir os shows, por comida e bebida e, às vezes, são obrigadas a se submeterem a situações sórdidas, como a de utilizar aquele sanitário”. Essas idéias só cessaram quando minha necessidade me obrigou a me retirar do estádio e seguir para o rancho. E o mundo voltou a ser “cor-de-rosa” por alguns momentos...
Não sou ingênua de achar que o “povão” não estava se divertindo. A vida cotidiana é árdua e nestas ocasiões o ideal é extravasar. Além disso, é típico de nós brasileiros aceitar aquilo que é dado. Não temos um espírito reivindicador. Para mim, seria conveniente esquecer o que senti sábado à noite. Mas o sentimento foi mais forte que a razão. Não consigo me conformar e aceitar que o mundo seja naturalmente injusto. Pois se é, de onde vieram nossas idéias de igualdade?

NOTA: Este texto foi escrito para o jornal "O Diário" de Barretos. Mas não foi publicado...

terça-feira, agosto 15, 2006


Saudade

Falta. Dor. Choro. Paixão. Palavras que cabem no sentimento chamado saudade. Uma saudade entristecida se apenas estes substantivos defini-la. Eu gosto mais daquela saudade boa, em que as lembranças não deixam a solidão invadir a alma.
Há inúmeras formas de saudade. Há aquela que jamais será saciada e, por isso, eterna: a saudade daqueles que amamos e que não estão mais entre nós. Esta carrega sempre uma dor, mas o tempo nos faz sorrir de novo ao recordarmos a pessoa querida. Existe também a saudade de alguém que estimamos, mas que por uma razão ou outra, dificilmente, voltaremos a encontrar. Amigos de infância, da “rua” e da escola. É verdade que em tempos de internet e seus sites de relacionamento é mais fácil ter notícias de quem um dia conhecemos, no entanto há aqueles que só lembramos o rosto de criança e que justamente por que éramos crianças, não nos preocupávamos com sobrenomes. Só nos resta recordar...
A saudade mais gostosa é a da pessoa amada quando sabemos que vamos reencontrá-la. Eu estaria mentindo se dissesse que o momento da separação é tranqüilo. Dói. No entanto, passada a intensa sensação que está faltando uma parte de nós mesmos, as lembranças nos invadem e nos alegram novamente. Cecília Meirelles poetizou este momento divinamente: "De longe hei de te amar... da tranqüila distância em que o amor é saudade e o desejo constância". Esta saudade nos faz também repensar o relacionamento. Reconhecer as nossas falhas e perceber o que outro realmente representa para nós é mais provável que aconteça na ausência dele. Assim, a cada reencontro, temos a chance de recomeçar.
Mas não temos saudade apenas de pessoas. Quem não tem saudade da sensação de medo quando ia na Roda Gigante de um Parque de Diversões qualquer? Quem não tem saudade do sentimento natalino de quando éramos crianças? Quem não tem saudade daquela ansiedade para sair no sábado à noite? Quem não tem saudade de si mesmo em momentos especiais? Embora haja alguém ao nosso redor, existem ocasiões que não temos saudade da pessoa em si, e sim do que sentimos quando estávamos ao lado dela. Essa saudade é íntima e, ás vezes, é impossível descrevê-la.
Cada um tem suas próprias saudades. Saudade de cheiros, de sabores, do olhar inocente diante do mundo...

Virtude esquecida

Outro dia fui ao cinema. Tratava-se de um filme voltado para o público infanto-juvenil. Imaginem...Adolescentes em peso! Foi árduo assistir, pois eles conversavam, assoviavam, jogavam pipocas... Isto não é “privilégio” das salas do cinema de Barretos. Um tempo atrás, fui no cinema do shopping de São Carlos. Peguei um ônibus para ir até lá e durante o trajeto atentei-me para uma turma de meninos e meninas que também estavam no coletivo. Falavam alto, faziam algazarra. Confesso que meu incômodo nesta situação fora influenciado por meu humor desfavorável, pois sei como é bom se divertir assim. No entanto, ao entrar na sala de projeção, encontrei o mesmo grupo. Mudei de poltrona duas vezes. Em vão. Só consegui ver de fato, quando alguns meninos desistiram e se retiraram, uma vez que a trama exigia muita concentração.
Não tenho dificuldade nenhuma em conviver com adolescentes. Pelo contrário. Admiro a sinceridade de suas atitudes, a intensidade com que vivem o amor e sua curiosidade infinita. Mas, ultimamente, muitos garotos e garotas desconhecem as condutas básicas do convívio social.
Qualquer adolescente pode apresentar comportamentos de rebeldia, evitar os pais e buscar aprovação nos amigos. É natural que ajam assim, pois estão numa fase de descoberta do próprio corpo e do sexo oposto, de questionamento dos valores paternos e de construção da identidade. O que causa estranhamento é que muitos não respeitam o limite entre eles e o outro, seja este outro adulto, criança ou adolescente de um grupo que não o seu. Procedem como se o mundo pertencesse apenas a eles, principalmente quando estão com a “turma”. Às vezes, o espaço do outro é ignorado (como no caso do cinema), porém, há situações em que a pessoa é diretamente agredida, verbal ou fisicamente.
É importante ressaltar que este aspecto da adolescência de hoje é global e não se restringe à determinada classe social. Casos de bullying (termo inglês para os atos, nas escolas, de humilhação e agressão física e psicológica constante, infringida por aluno contra um outro aluno “escolhido” para ser a vítima) são freqüentemente relatados nas instituições particulares.
Embora os pais tenham uma parcela de responsabilidade pelo desnorteamento dos filhos, acredito que isto seja um reflexo da sociedade como um todo. A mídia, geralmente, prega a realização individual e momentânea como o bálsamo da felicidade. E os membros da sociedade abençoam quem atingem tal êxito. Assim, os adolescentes buscam o prazer a todo custo, seguindo o modelo do lar, das pessoas públicas e da televisão. Infelizmente, colocar-se no lugar do outro se tornou uma virtude rara.