Mafalda


quarta-feira, abril 25, 2007


Refúgio

Sempre gostei de óculos escuros. Além da proteção visual e do fator estético, estar atrás de lentes esfumadas proporciona uma sensação de resguardo e anonimato. Se olhos são as janelas da alma, é ela que é encoberta ao se vestir óculos escuros.
Lembro-me quando eu morava em São Paulo. As pessoas despertavam a minha curiosidade: cada um deveria ter sua história e seu dilema. Crianças, idosos, jovens provenientes de todos os cantos do país. Eu gostava de olhar para eles e imaginar como seriam suas vidas. Assim, na saída da faculdade, enquanto eu esperava o ônibus na Av Paulista, observava os transeuntes e também aqueles que assim como eu aguardava o coletivo. Durante o trajeto para casa, continuava “estudando” os passageiros. Eu não costumava conversar: lá, geralmente, não só cada qual vive a sua vida como também prefere não compartilha-la com estranhos (naquela época, eu igualmente achava melhor que assim fosse...). Quando eu me dirigia ao Terminal Tietê para pegar o ônibus para cá, passava um bom tempo no metrô e era olhando as pessoas entrando e saindo, cochilando, fatigadas, apressadas, sisudas, que eu me distraía.
Mas comecei a me dar conta que em São Paulo poderia ser arriscado o ato de olhar. Havia a possibilidade de ser mal interpretada e sabe-se lá o que acarretaria. Então, passei a usar óculos escuros até quando o tempo estava chuvoso e mesmo no metrô (lá, isto é muito pouco para os outros te acharem estranho...). Desta forma, eu observava à vontade, sem me sentir embaraçada e o mais importante, sem representar uma ameaça ao outro... Minha preocupação era não deixá-lo perceber que seu espaço, de certa forma, foi invadido; ou melhor, não permitir a ele perceber que passou a existir para outra pessoa, deixando de ser mais um na multidão...Os olhos revelam nosso “espírito”. Brilham quando estamos apaixonados! Sorriem quando estamos felizes! Mostram-se distantes quando estamos desinteressados pelo que acontece ao nosso redor – ensimesmados... Abatidos quando estamos tristes. Ou, como na minha experiência paulistana, penetrantes quando estamos curiosos. Assim, se pretende ocultar sua alma, vista óculos escuros e tornar-se-á momentaneamente invisível. Mas por outro lado, não se esqueça de desconfiar de promessas feitas sob as lentes escuras...

quarta-feira, abril 18, 2007


Escola e vestibular. Cadê a Educação?

As escolas, sobretudo as particulares, costumam medir sua qualidade através do número de alunos aprovados nas principais Universidades do país. É comum, no final do ano, encontrarmos nos jornais rostos pintados com a sigla da instituição de Ensino Superior como prova e propaganda da eficiência escolar. Que o sucesso nos vestibulares seja uma forma de estimar o ensino é até admissível: o problema é considerá-lo o único instrumento de avaliação. Se realmente os professores nutrem os alunos apenas dos conteúdos exigidos nos processos seletivos, não estão cumprindo o papel de educadores...
Educar, além de ensinar os conhecimentos curriculares, é promover a cidadania e a autonomia. Imaginem um adolescente capacitado para passar no vestibular para a Faculdade de Medicina da USP, mas que não foi preparado humanamente para isso...Não é à toa que anos atrás um calouro da renomada Universidade foi encontrado morto numa piscina...Este é um exemplo extremo, porém não é difícil encontrarmos na sociedade advogados, engenheiros, arquitetos, psicólogos, administradores, docentes e os mais variados profissionais que ignoram a ética visando somente o próprio bem material...
O que significa fomentar a cidadania? Representa instigar a atenção e o envolvimento dos alunos frente aos problemas político-sociais, levá-los a perceber a importância de ajudar o outro e despertar neles o prazer advindo das ações coletivas. Já a autonomia se relaciona ao aprendizado das responsabilidades e a busca pela independência, financeira e afetiva. Ser autônomo constitui, em outras palavras, desfrutar a liberdade com maturidade suficiente para assumir os próprios erros. Assim, a Educação genuinamente integral, deve propor-se, além de transmitir os conteúdos exigidos no vestibular, formar adolescentes motivados para tornarem-se profissionais conceituados como exemplos de seres humanos. Sem dúvida, a escola não é a única responsável pela educação. Os pais, principalmente nos primeiros anos de vida, são cruciais para o desenvolvimento da criança. Mas tendo em vista que atualmente as crianças vão mais cedo pra a escola e que o tempo com os pais é bastante restrito, o papel dos professores na formação do caráter do indivíduo tem sido cada vez mais importante. Promover o ingresso em ótimas Universidades é uma ótima propaganda, mas não garante que a escola se orgulhará de seu ex-aluno.

quinta-feira, abril 12, 2007


Deixando a “Terra do Nunca”

Mariam passou dez bem vividos anos longe de sua terra natal. De certa forma, foi impelida a voltar. Encontrou velhos amigos e descobriu que alguns, agora, eram apenas velhos conhecidos. Com outros concretizou laços outrora frouxos. Porém, o que lhe trouxe maiores problemas foi a sua inserção em grupos até então desconhecidos...
Quando resolveu treinar vôlei no clube onde passou muito tempo de sua infância e adolescência, sentiu um friozinho na barriga. Conhecia apenas o treinador e um dos garotos. A maioria que lá treinava era meninos e meninas com idade entre 12 e 17 anos. Perto dos 30 anos, Mariam geralmente não tem problemas de conviver com adolescentes. Mas qualquer situação nova que envolva o relacionamento com pessoas desconhecidas, deixa-a ansiosa. Assim, quando chegou, procurou se resguardar. Estando treinando também em outro local, Mariam até que não jogava mal. Por isso, de início, foi bem aceita e sentiu-se mais à vontade para soltar-se. Porém, bastou que ela cometesse alguns erros para que a garotada começasse a reclamar e pegar insistentemente no seu pé...Quebrou-se a harmonia.
Por muitos anos, Mariam fora aquele tipo de pessoa que ouvia desaforos e não revidava. Mas a vida lhe ensinou que a passividade faz mal à saúde. E, embora ela saiba que responder de forma hostil não é o adequado quando se busca o respeito e uma possível mudança da atitude do outro, às vezes ela reage assim perante as provocações dos meninos do vôlei. Depois se entristece com o próprio comportamento. Fica se perguntando como deixa se provocar por esses garotos. Por que se irrita tanto? E enfim, num pensamento típico de adolescente questiona-se: “Por que eu?”.
A resposta às suas indagações não é um mistério. Mariam é de certa forma ingênua: costuma dizer o que pensa. Gosta de relacionar-se com qualquer pessoa. Interessa-se pelo outro, pelo que ele tem de singular. E da mesma forma, ela se entrega. Por que a provocação dos garotos à afeta tanto? Primeiro, porque ela não encontrou a maneira ideal para lidar com eles e, segundo, porque além dela conhecer-se o suficiente para saber que a crítica destrutiva só prejudica seu desempenho, está ciente de que elogiar os acertos, mesmo os mais elementares, é a forma mais eficiente de ensinar, seja um esporte, uma disciplina acadêmica ou qualquer habilidade da educação informal.

quarta-feira, abril 04, 2007


A ministra, a imprensa e o racismo

Na semana passada, a ministra Mathilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial, tornou-se alvo da imprensa devido à entrevista que ela concedeu à BBC (emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido). Como é de praxe, a mídia brasileira destacou algumas falas da ministra, retirando-as de seu contexto: “Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco" [...] A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural[...] Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”. Foram estas as palavras que chegaram à maioria da população brasileira, sendo alteradas conforme o interesse da emissora (O Jornal do SBT, por exemplo, ao realizar um debate interativo, convidou os telespectadores a opinar a declaração da ministra, que segundo o âncora era a seguinte: “A reação de um negro de não conviver com um branco é normal” e “é normal o racismo do negro contra um branco”. Ao trocar a palavra natural por normal, o jornalista distorceu o sentido da sentença, enviesando o pensamento do público).
Lendo-se a entrevista na íntegra, constata-se a má-fé da imprensa brasileira. Quando a ministra disse que não é racismo o negro se insurgir contra o branco, ela logo completou: racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros”. E, ao apontar que é natural um negro se recusar a conviver com o branco, ela emendou: “... embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa”.
Deixando a mídia de lado e refletindo agora sobre os dizeres da ministra, considero bastante pertinentes suas considerações, uma vez que a reação do negro ante o branco é conseqüência não só da escravidão, mas também dos dias atuais (afirmar que não existe mais discriminação étnica é hipocrisia...). Qual a primeira reação de uma pessoa quando é ofendida? E mais: qual a atitude de alguém que desde pequeno é discriminado? De fato, responder “na mesma moeda” não condiz com o ideal de uma sociedade harmônica. Porém, exigir cortesia imediata de quem acabou de ser atacado é demandar um caráter sobre-humano! Querer que o negro “ofereça a outra face” é mais um sinal de racismo, pois é exigir deles uma perfeição cristã que a maioria de nós está longe de possuir. Não é racismo o negro rebelar-se contra o branco. É apenas HUMANO!