Mafalda


sábado, dezembro 30, 2006


Balanço

Conheci uma garota. O nome dela é Mariam. Como estamos no fim de ano, fui logo indagando a ela sobre suas expectativas para os doze meses seguintes, ao que ela me respondeu: “Só espero não repetir os mesmos enganos de 2006...”. Fiquei um pouco sem saber o que dizer. Pensei: “Será que pergunto a ela sobre esses enganos?” Mal a conhecia e não queria invadir seu mundo assim de repente, sem autorização. Estávamos numa roda de amigos, muitos falavam, mas naquele dia eu não escutava quase nada. Algo me impeliu e eu disse baixinho: “Enganos?” Ela me olhou por uns instantes, baixou os olhos e falou mansamente: “Você quer mesmo saber? Não é nada extraordinário... Mas se quiser ouvir eu falo...” Eu acenei a cabeça afirmativamente.
Mariam falava baixo e pouco. Naquela ocasião, quase não tinha ouvido sua voz. Ela prestava atenção ao que era dito e, às vezes, parecia não estar ali. Quando perguntei a ela sobre as expectativas, tive a impressão de que naquele momento seu pensamento estava em outro lugar. E sua resposta veio de lá: “Falo de enganos porque penso que tenho julgado erroneamente as pessoas. Não deveríamos nem julgar, apenas sentir...”. Disse isso e ficou me olhando. Eu não pronunciei nada, esperei por algo mais. Então ela completou: “Mas não sei se isto é humanamente possível...” E eu apenas disse “Acho que não é...”.
No entanto, Mariam aparentava estar um tanto angustiada.. Eu fiquei em silêncio. E ela reiniciou: “Sabe, percebo cada vez mais que a maioria das pessoas não gosta de ouvir o outro, o que tem me deixado bastante incomodada. Mas, ao mesmo tempo, estou me tornando assim também. Raramente eu falo. Porém, sinto que não estou mais tão disposta a escutar. Isso me entristece...” Ela baixou a cabeça e disse em “tom de confissão”, como se fosse só para ela: “Às vezes, penso que é melhor ser sozinha...”. Eu não estava entendendo bem a relação destas falas com a anterior - sobre julgar as pessoas e, ela, parecendo adivinhar meus pensamentos, continuou num grande desabafo: “No próximo ano, espero me atentar para aqueles que merecem ser ouvidos. Sei que quando digo ‘merecem’ estou julgando. No entanto, não dá para ser diferente. Não consigo mais! Sinto que, ao tentar escutar a todos, estou me sufocando... Poucos me deixam falar. E estes poucos que me escutam estão sofrendo com a minha impaciência porque é com eles que tenho a liberdade de dizer que não agüento mais apenas ouvi-los, que preciso me expressar também!”. Mariam respirou, esboçou um sorriso e finalizou: “É arrogância demais querer ser o que sua natureza não permite...”.

domingo, dezembro 24, 2006


Espírito de Natal

Trocar presentes no dia do Natal é uma tradição há muito tempo incorporada por quase todo o planeta. Uma das razões para este costume é de comemorar o nascimento de Jesus como dádiva para toda a humanidade. A outra, remete às oferendas (incenso, ouro e mirra) que os Três Reis Magos concederam ao Menino Jesus para adorá-lo. Então, ao presentearmos as crianças, homenageamos Cristo, pois além de relembramos a generosidade dos sábios, estamos considerando Sua palavra: "o que fizerdes a cada um destes pequenos, a mim o fazeis" (Mt. 25, 40).
Muito se fala sobre o consumo exagerado na época de Natal atualmente. Somos bombardeados por propagandas com produtos para todas as idades. Mas, sem dúvida, as crianças são os maiores alvos. E é fato que o Papai Noel está bem mais evidente na imaginação dos pequenos que o Menino Jesus. O que não é tão inevitável quanto parece...
É cômodo culpar a televisão por todos os males. Com certeza, a publicidade e a programação da mídia têm uma grande responsabilidade sobre a fantasia das crianças. No entanto, os pais ainda têm a possibilidade de educar, seja pelo que diz aos filhos, seja pelos seus próprios atos. No caso do Natal, contar a história do nascimento de Jesus às crianças, explicando o porquê dos presentes, é uma tarefa fácil e de simples compreensão para os pequenos. Só que isto não basta. A criança absorve muito do ambiente em que ela vive. Não adianta desmentir com gestos o que você colocou a ela. É preciso que ela sinta o espírito de Natal - a generosidade entre os pais, irmãos, tios e avós. Como dizer a ela que Cristo trouxe paz à humanidade se o que ela vê é desunião e desrespeito? Não é o Papai Noel que traz o esquecimento do Menino Jesus. Somos nós que não lembramos Dele!
A história do bom velhinho é bem antiga também (inspirada na pessoa de São Nicolau, nascido em 350d. C e conhecido pelo seu altruísmo e compaixão). Quem se recorda da infância, sabe o encanto que era esperar pela chegada do seu trenó. Era como um dia mágico, aguardado durante todo o ano! Não era só pelos presentes, mas por toda a celebração em torno da data – as brincadeiras, as luzes, a família reunida e a ansiedade saudável!
Se buscarmos nos reunir em paz, festejando a amizade, o amor e a dádiva da vida, Jesus estará presente, durante não só o Natal, mas o ano inteiro...

sexta-feira, dezembro 15, 2006


Não basta tirar as correntes

Conheço uma história de um vilarejo estadunidense onde o povo negro vivia ainda sob o regime da escravidão e, quando foram libertados por uma forasteira, não sabiam como proceder na condição de liberdade...Trata-se do filme “Manderlay”, do polêmico diretor dinamarquês Lars von Trier. De início, a forasteira tentou instituir o regime democrático, ensinado-os conceitos e extinguindo hierarquias discriminatórias. Mas fracassou: os próprios ex-escravos rebelaram-se contra a nova ordem com a intenção de restaurar o regime de outrora.
Como todo filme deste diretor, “Manderlay” nos permite fazer inúmeras analogias, tanto com a história passada quanto com a contemporânea, tanto com a sociedade quanto com o cotidiano individual de todos nós. Os ex-escravos estavam acostumados a viver sob regras rígidas, horários e funções previamente estabelecidos por outro, considerado superior e inquestionável. Ao retirarem isso deles, é como se eles não soubessem mais quem eram, ou seja, perderam a identidade.
Assim, além de uma crítica ácida da escravatura e da democracia estadunidense, esta obra dá lugar para se pensar sobre a forma que recebemos as mudanças que nos são impostas ou que simplesmente acontecem. Um dia me disseram que mudar dói. De fato, pois é muito difícil transformar nossa rotina, nossos hábitos e, sobretudo, nossos conceitos. Às vezes, uma reformulação no cotidiano aparentemente simples exige questionarmos o que sempre tivemos como certo e inabalável, tornando-se ainda mais complexa quando o que precisamos mudar é aquilo que consideramos como a essência do nosso Ser.
Tal como os personagens de Manderlay tornaram-se escravos devido ao lugar que nasceram e a forma que foram “educados”, o que consideramos como nossa identidade é conseqüência daquilo que vivenciamos. Porém, apesar de nos apegarmos a determinadas características para nos definirmos, somos, acima de tudo, capazes de refletir e de engendrar transformações no nosso íntimo. Mesmo que mudar cause sofrimento, pode valer mais a pena uma tristeza temporária do que ser vítima, durante a vida inteira, do medo de se questionar.
Arraigar-se no que parece correto e seguro significa, muitas vezes, tornar-se um pássaro engaiolado, mas a diferença é que a liberdade está em nossas mãos...

quarta-feira, dezembro 13, 2006



Regresso à adolescência

No último fim de semana, fui viajar para Andradina, onde moram uma tia e dois primos – uma menina que acabou de completar 15 anos e um garoto de 17 anos. De toda minha extensa família, são com esses primos que tenho mais contato, tanto pessoalmente quanto pela internet. No entanto, apesar de já ter ouvido inúmeras histórias deles com seus amigos, só agora pude conhecer toda a turma, pois esta foi a primeira vez que fui para lá. Estar entre eles me fez sentir a vida como ela nunca deveria deixar de ser...
Quando se é adolescente, a amizade é realmente valorizada. Não é à toa que um desentendimento considerado banal por um adulto pode ser motivo de sofrimento para um garoto(a). Porém, ao contrário de nós, adultos, o adolescente parece perdoar com mais facilidade. Além disso, as relações entre os pares são mais afetuosas e eles se entregam mais. Nesta idade, ainda não são tão necessárias as máscaras sociais – o adolescente tem mais liberdade para abrir seu coração. Pois, mesmo que um garoto(a) sinta uma pressão para ser aceito no grupo, não acredito que isso tolha sua individualidade, pois ele(a) acaba escolhendo estar com aqueles que se identifica.
Entretanto, se escutarmos alguém chamando um adulto de adolescente, automaticamente interpretaremos de forma pejorativa. Ao deixarmos a adolescência, nos vemos obrigados a assumir responsabilidades e agir prudentemente. Assim, é comum lembrar esta fase do desenvolvimento restringindo-a a uma época em que éramos passionais e não tínhamos preocupações como trabalho e família.
Realmente, tornar-se adulto implica assumir compromissos e refletir nas conseqüências de seus atos – pensar no amanhã. É preciso abandonar o viver imediato adolescente. No entanto, isso não significa que devemos nos tornar pessoas extremamente centradas em nós mesmos, encarceradas pelo individualismo e impenetráveis no cotidiano. Entristece-me a dificuldade que tenho para fazer novas amizades com adultos. Parecem temer ser descobertos. Talvez, se preservássemos a sensibilidade, a afetividade e a transparência típicas da adolescência, poderíamos deixar que nos conhecessem e então conquistaríamos novos e autênticos amigos. A solidão somos nós que construímos...