Mafalda


sábado, novembro 21, 2009

Talvez

Tem dias que me espanto com condutas que se travestem de precupação alheia para exaltar um pseudo bom caratismo, uma vez que visam apenas o bem de quem as empregam.
Sim, já agi com segundas intenções. E muitas vezes sou egoísta. Encaro isto, atualmente, questão de sobrevivência.
Mas não engulo quem veste a máscara de bom cidadão, usa retórica ardilosa para trapacear, não se expõe e, no final, beneficia-se não só com vantagens pessoais como também com o apreço e estima do público.
O que também não suporto são aqueles que se auto-intitulam detentores de um saber superior e são incapazes de ouvir uma opinião divergente. Menosprezam a vivência popular e descartam qulaquer argumento que não condiz com seu constructo de mundo.
Inúmeras vezes me peguei pensando [arrogantemente, talvez]: "Dizem saber tanto, mas ignoram a diversidade da vida humana. Isto sim é um não-saber."
Posso estar equivocada, pois é este o tipo de pessoa que é bem visto pelos outros, que convence a maioria e que é admirada. Seu saber inalcançável não deixa possibilidade de diálogo: somos tão insignificantes que podemos somente escutá-lo. O que aprendemos? O quão profunda é nossa inferioridade.
Mas talvez meu universo de contato esteja demansiadamente reduzido.

Talvez fazer especulações sobre o caráter do outro não traga nada de frutífero a mim.. Talvez um dia eu não importe mais com o apreço alheio e me contente com a satisfação intrínseca. Ou talvez eu mude e encare com normalidade o ineditismo da virtude.
Só direi "talvez", pois depois de assistir "Dúvida", temo proclamar com convicção qualquer afirmação.

segunda-feira, junho 15, 2009

Miragem

Sentia medo. Estava frio. Queriam saber porque eu estava ali. Diziam palavras que para mim não fazia sentido algum. Eu não sabia se me queriam bem ou se me afrontavam. Temendo o pior, permaneci em silêncio.
Era minha primeira noite. Eu havia chegado no fim da tarde. Não me lembro das primeiras horas. Sei que disseram que eu ficaria bem desde que não desapontasse. Acho que eu sentia fome.
Disseram-me que eu estava ali por ter infringido a sociedade. Eu não sabia o que isto significava...
Nasci na rua. Aos 6 anos, deram-me um saco para cheirar. Gostei. Eu ria e não sentia fome. Pedia dinheiro no farol, mas logo aprendi que era mais fácil roubar. Aos 10 anos, já era um grande batedor de carteiras. Nunca usei arma: o pastor da praça disse que quem mata vai para o inferno...
A polícia me pegou furtando de uma velhinha na Sé. Levaram-me para um lugar junto a outros meninos parecidos comigo. Lá não tinha estrelas na hora de dormir. Mas lá eu comecei a ir à escola e a comer todos os dias. Levaram-me ao cinema (foi a primeira que fui e no início confesso que me assustei muito: o filme era ‘Velozes e Furiosos” e achei que os carros viriam para cima de mim...). Aprendi tocar bateria. Fiz amigos. Descobri o que é preocupação.
Alguns recebiam visitas das mães. Eu não tinha mãe. Mas eu até achava melhor não ter mãe do que ter e não receber visita dela.
Conheci outro mundo. Eu aprendi (não sem dificuldade) a ler e, enquanto os meninos ficavam com seus parentes, eu devorava livros. No começo, entendia pouco. Era como um papagaio mudo. Mas a professora de português me ajudou e, aos poucos, diversas realidades abriram-se para mim.
Quando sai de lá, após alguns meses, tive vontade de voltar para as ruas. Mas a ONG havia arrumado um local para eu morar e matricularam-me no supletivo. Resolvi acreditar e pensar em algum futuro...
Hoje tenho 23 anos e estudo letras no período noturno. Trabalho como garçom num restaurante durante o dia, ofício que aprendi naquele lugar que fiquei por ter infringido a sociedade.
Dizem que sou minoria. Espero um dia não ser. Espero existir.